Por Luís Henrique S. Silva
Atualmente na igreja evangélica brasileira devido a uma série de
literaturas, principalmente de origem norte-americana, publicadas ao longo de anos,
alguns problemas teológicos têm sido mais bem analisados do que outrora. Especialmente
o problema de legalismo[1] em
comunidades cristãs aparece neste tipo de literatura como uma farta fonte para
a análise da espiritualidade dos cristãos.[2] Certamente
muitos cristãos já tiveram que enfrentar alguma situação (ou ainda enfrentarão)
na igreja que poderia ser classificada como legalismo.
Portanto, este problema não é um
assunto exclusivamente relacionado com as academias teológicas, ao contrário
ele nos remete ao cotidiano de nossas igrejas através da relação pessoal entre os
cristãos. Obviamente o erro legalista decorre de uma perspectiva teológica
errada e assim afeta a toda prática cristã.[3] Na
Escritura vemos exemplos de legalismo nos fariseus, os quais conforme Jesus “Amarram
fardos pesados e os põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam,
nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos” (Mt 23.4 NTLH). Dentre
tantas coisas que poderiam ser destacadas, enfatizamos que o legalismo
farisaico oculta a hipocrisia destes líderes espirituais em exigir do seu
rebanho algo que o próprio Deus não ordenara. Inevitavelmente muitas pessoas
deveriam se encontrar frustradas e exaustas espiritualmente tentando cumprir
com a suposta vontade de Deus. Jesus caracteriza estas pessoas “como ovelhas
sem pastor” (Mt 9.36 NVI).
O Novo Testamento nos informa que o
problema do legalismo não é uma novidade contemporânea, visto que Jesus e
posteriormente os apóstolos tiveram de enfrenta-lo[4] ele
tem se mostrado um erro recorrente na história cristã. Todavia outro assunto
menos trabalhado (ou quem sabe pouco conhecido, porém presente em muitos
círculos evangélicos) por autores e seus livros caracteriza-se por ser a
antítese do legalismo, estamos falando de um problema chamado antinomismo. Tal
como o legalismo, o antinomismo também tem acompanhado a história da igreja
desde a sua fundação. Especificamente no protestantismo do século XVI o
antinomismo emergiu na figura de João Agrícola, o qual entrou em debate com
Martinho Lutero, ensinando que a lei de Deus (Decálogo) deveria ser removida da
igreja.[5]
O assunto do antinomismo interessa muito
a nós arminianos devido a ser um tema relevante que impacta a prática de uma
igreja espiritualmente saudável bem como por termos um grande ícone da tradição
arminiana, John Wesley, o qual dedicou pelo menos dois escritos seus
diretamente a este problema, a saber, a Conversa Entre Um Antinomista e Seu
Amigo e a Segunda Conversa Entre Um Antinomista e Seu Amigo.[6] Alguns
pontos destas duas obras merecem ser brevemente destacados para uma visão
global deste relevante assunto.
Na primeira conversa a doutrina da
justificação pela fé é usada pelo antinomista para dizer que todos os pecados
pessoais do crente (passados, presentes e futuros) foram “destruídos”. As
respostas embasadas na Escritura para a questão levantada são, para o
antinomista, uma apelação ao uso da razão carnal sob o seu evidente fideísmo.[7] O
antinomista acusa o amigo de ser legalista por tê-lo confrontado com versículos
opostos a sua crença. O amigo, por sua vez, acusa o antinomista de dizer coisas
sem sentido e não fazer a distinção entre justificação e santificação.
Já na segunda conversa começa com uma
discussão terminológica, o antinomista não aceita ser rotulado como tal. Em seu
parecer ele é um pregador da justiça de Deus, enquanto o amigo prega uma
justiça inata (i.e. há aqui uma sutil acusação de pelagianismo). O amigo
explica a libertação da lei distinguindo-a em cerimonial e moral, o homem não
precisa cumprir a lei cerimonial, porém a respeito da lei moral o homem está
livre da condenação, mas não de cumpri-la. Conforme o amigo, uma possível
síntese dos posicionamentos entre os dois não ocorrerá porque o antinomista
possui: 1) uma linguagem imprecisa; 2) uma linguagem ambígua; 3) uma linguagem
não escriturística; 4) porque esta forma de falar pode produzir soberba. Com
estas informações podemos entender um pouco sobre o tipo de antinomismo[8]
que Wesley enfrentou em seus dias.
Uma vez obtido este discernimento
sobre o antinomismo, devemos nos perguntar: atualmente a crítica ao legalismo
não tem gerado certa antinomismo na igreja? Ao que parece uma resposta positiva
não seria descabida, em vez da crítica centralizar o pêndulo da prática cristã
nas prescrições bíblicas ela o tem levado em algumas circunstâncias para o
outro lado, o lado do antinomismo. O crescimento de evangélicos sem vínculos
com qualquer instituição[9] é
uma demonstração empírica de uma forma líquida de conceber a espiritualidade, caracterizada
pelo despojamento de regras cúlticas e o evidente desapontamento com a
estrutura tradicional eclesiástica. Tal desapontamento se cristaliza, principalmente,
em críticas a “religião” e a “religiosidade” como intrinsicamente más,
inibidoras da verdadeira espiritualidade, propaladoras de legalismo, etc. Tudo
isto, por sua vez, abre espaço para o surgimento de um sentimento
restauracionista e pensamento revisionista quanto a tradição cristã.[10]
Wesley também enfrentou o problema gerado
pela distorção do cristianismo bíblico. Em Um Apelo Sincero aos Homens de Razão
e Religião, ele se propõe a defender o movimento metodista de algumas
críticas, e ao explicar o fundamento da religião cristã a sua oponente, ela lhe
diz: “Senhor, se isto for Cristianismo”, “Eu nunca vi um cristão em minha
vida.”[11] O
antinomismo distorce a religião cristã e cria a visão romântica que podemos ir
ao seu encontro em nossos próprios termos. Não há ideia mais errada sobre Deus
do que esta, o Senhor do universo não se submete aos caprichos humanos e nem
aceita os seus egoísmos. A teologia Armínio-wesleyana exalta a soberania de
Deus e afirma que o homem deve se sujeitar aos termos divinos para a realização
da sua vontade. Jesus deixa claro que quem vive uma vida imprudente ouvirá no
último dia: “Em verdade vos digo que não vos conheço” (Mt 25.12). Jesus
rejeitará toda aparência de cristianismo, não há cristianismo teórico, a
profissão de fé em Jesus exige uma vida compromissada com o reino de Deus e sua
vontade (Mt 25.31-46).
Uma das características do antinomismo
é ter um discurso que aparentemente exalta a graça divina, no entanto, na
prática acaba por negá-la. O apóstolo Tiago nos informa que a genuína graça
dispensada a nós não dá pretexto algum para uma vida indisciplinada e relapsa
em relação ao cultivo das virtudes cristãs (Tg 1.22-25). A graça é a força que
impulsiona o cristão a buscar a Deus não apenas em palavras, mas através de
todo o seu ser. A verdadeira religião e religiosidade, para Tiago, consistem no
exercício da santidade de vida.
Alguém está pensando que é religioso? Se não
souber controlar a língua, a sua religião não vale nada, e ele está enganando a
si mesmo. Para Deus, o Pai, a religião pura e verdadeira é esta: ajudar os
órfãos e as viúvas nas suas aflições e não se manchar com as coisas más deste
mundo. (Tg 1.26-27 NTLH)
Na tradição Armínio-wesleyana a
santidade não é vista apenas sob o aspecto pessoal, mas também social. A
santidade tem que ir além da experiência solitária, ela precisa ser realizada
dentro do contexto da comunidade cristã. Grosseiramente, a santidade encontra o
seu objetivo no serviço ao próximo, coisa que uma santidade ou religião solitária
não consegue alcançar. Wesley chega a afirmar que: “... o cristianismo é
essencialmente uma religião social, e que fazer dele uma religião solitária é,
na verdade, destruí-lo.”[12] De certa forma a inclinação antinomista a
descorporização deságua em ostracismo e quietismo, os quais são uma séria
ameaça a esfera social da santidade. A prática de obras de piedade e de misericórdia
só são possíveis excluindo-se o individualismo antinomista e o seu
descompromisso com a graça. Tais obras beneficiam tanto quem é servido quanto
quem as ministra e, conforme Wesley, são meios de graça nos quais somos
aperfeiçoados e crescemos em amor a Deus e ao próximo.[13]
Portanto, o antinomismo perversamente, em nome da graça, priva o homem da
graça, de ser aperfeiçoado através dela e crescer nela.
Para John Wesley não há cristianismo
de um homem só! Porém este é o caminho do antinomismo, ele vai rumo a religião
solitária que não tem preocupação em servir e amar o próximo. Há também uma forma
velada de antinomismo que podemos encontrar em muitas comunidades cristãs,
trata-se da terceirização da caridade cristã. Sim, aparentemente o amor cristão
foi terceirizado a um departamento da igreja! Em vez de toda igreja participar
ativamente do exercício da caridade esta responsabilidade foi transferida a um
grupo específico. Embora não seja errado a criação de um departamento
específico para a “ação social” a fim de uma melhor organização, o exercício de
obras de misericórdia é dever de todo cristão e não apenas de alguns.
Tal como Wesley, precisamos dizer: “A
coisa que você precisa é a religião que pregamos.” “Você precisa da religião do
amor e nada mais.”[14] Só
a religião do amor nos apresenta ao Cristo soberano que recebe o pecador, mas
também diz: “vai e não peques mais.” (Jo 8.11). Tanto o legalismo quanto
o antinomismo criam orgulho espiritual e abrem espaço para a reivindicação de
superioridade espiritual. Todavia, a
religião do amor cria humildade e serviço ao próximo. De fato devemos exaltar a
graça, ela aceita a todos, mas por outro lado não deixa de transformar ninguém
que está ao seu alcance. Falar sobre graça e desconsiderar a transformação que ela provoca é fazer apologia contra ela. A máxima latina “In medio stat virtus” (trad.
A virtude está no meio), lembra-nos que as boas coisas não estão em opostos
antagônicos, mas sim entre eles. Portanto, que possamos orar cantando:
2. Vem,
Senhor, ajudar o teu povo a se unir,
Se o que tem é pouco, na partilha é sustento.
Dá-lhe sempre esperança e mais fé para prosseguir
Aperfeiçoa o amor que é mais do que alimento.[15]
[1]
Basicamente o legalismo coloca a observação a leis como meio para salvação.
[2] Por
exemplo, autores como Philip Yancey e Brennan Manning têm se servido de suas
experiências pessoais para abordar em seus livros o legalismo e o árido
formalismo eclesiástico.
[3] O
arminiano D.L. Moody corretamente salienta que: “A Lei não foi dada como meio
de salvação. Foi dada a um povo já salvo (19:4; 20:22) a fim de instruí-lo na
vontade do Senhor, para que pudesse realizar o propósito de Deus como ‘um reino
de sacerdotes e uma nação santa’ (19:6). A revelação foi dada ‘não para dar,
mas para orientar a vida.’” In: SANTOS, Flávyo H. A Lei como revelação de
Deus. São Paulo: Editora Reflexão, 2016. p. 57.
[4] Por
exemplo, no cumprimento do sábado: Mt 12.1-14; leis dietéticas segregacionistas:
Mt 9.9-13; observância de coisas insignificantes em detrimento das importantes:
Mt 23.23; circuncisão: At 15.1-35; Gl 6.12-16; ritualismos como forma de
aperfeiçoamento: Cl 2.16-23.
[5]
ANTINOMISMO. SCHÜLER, Arnaldo. In: Dicionário Enciclopédico de Teologia.
Canoas: Ed. ULBRA, 2002. p. 50-51.
[6] Ambos
escritos estão no Tomo VII das Obras de Wesley traduzidas para o espanhol.
Disponível em:
[7]
“Designação dada a todos sistemas filosóficos que põem a fé acima da razão.”
SCHÜLER, 2002. p. 205.
[8] Conforme
o autor calvinista J.I Packer os tipos podem ser classificados em antinomismo:
1) dualístico; 2) centrado no Espírito; 3) centrado em Cristo; 4)
dispensacional; 5) dialético; e 6) situacionista. Contudo, a descrição do
antinomismo dada nos escritos de Wesley não parece se encaixar peremptoriamente
em nenhum deles. Por isso prosseguiremos
chamando apenas de antinomismo sem classifica-lo. Para o desenvolvimento desta
classificação veja: PACKER. J.I. Teologia Concisa. ed. 1 Campinas: Editora Cultura Cristã, 1999. p. 168-170.
[9] GOIS,
Antônio; SCHWARTSMAN, Hélio. Cresce o número de evangélicos sem ligação com
igrejas. 2011. Disponível em: .
[10] Caio
Fábio, por exemplo, atribui a equivocada descrição de Deus pela religião a
crescente descrença no mundo. Disponível em:
.
[11] WESLEY,
John. Um Apelo Sincero aos Homens de Razão e Religião. Maceió: Sal
Cultural, 2016. p. 18.
[12] WESLEY,
John. Sermón 24: Sobre el sermón de nuestro Señor en la montaña Cuarto
discurso. In: GONZÁLEZ, Justo L (Org.). Obras de Wesley. Henrico:
Wesley Heritage Foundation, 1996. Tomo II. p. 84. Disponível em:
[13] COLLINS,
Kenneth J. Teologia de John Wesley. Rio de Janeiro: CPAD, 2010. p. 347.
[14] WESLEY,
2016. p. 25-26.
[15] WESLEY,
Charles. Vem, Senhor, Ajudar. In: Hinário Metodista Brasileiro. São
Paulo; São Bernardo do Campo: [s.n.], 2011. p. 55. Disponível em:
Fonte: O Wesleyano
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