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Reflexões Sobre a Soberania de Deus


Reflexões Sobre a Soberania de Deus

Deus revela a si mesmo de dois modos: como Criador e como Soberano. Estas duas funções não são de modo algum incompatíveis, ainda que sejam diferentes.

Enquanto Criador, Deus atuou em tudo segundo a sua soberana vontade. A justiça não teve, nem poderia ter, espaço neste momento já que o que não existe não pode gerar direitos. Consequentemente, aqui Deus pode agir segundo o desígnio da sua própria vontade no sentido mais absoluto. Foi assim que criou os céus e a terra, e tudo quanto há nela, em todo aspecto imaginável segundo o seu beneplácito.[1] 1. Deus começou a sua criação num instante, ou melhor, no momento da eternidade que acreditava ser mais conveniente. Pode tê-la feito milhões de anos antes ou milhões de anos depois, se assim o tivesse desejado. 2. Foi ele quem decidiu, por sua vontade soberana, a duração do universo: se haveria de durar sete mil, setecentos mil, ou milhões e milhões de anos. 3. Semelhantemente, determinou que lugar ocuparia o universo na imensidão do espaço. 4. Por sua soberana vontade determinou o número de estrelas, a quantidade de componentes do universo, e o tamanho de cada átomo, de cada estrela, de cada planeta e de cada cometa. 5. Como Senhor, criou a terra e tudo o que há nela, animado e inanimado, cada coisa com as suas características particulares segundo a sua natureza. 6. Por sua própria vontade, criou o ser humano, um espírito dentro de um corpo, e por ser de natureza espiritual, dotado de entendimento, vontade e liberdade. 7. Decidiu o tempo em que se formariam as nações e quais seriam os limites dos seus territórios. 8. Dispôs o tempo, o lugar e as circunstâncias para o nascimento de cada pessoa:

Se de pais nasci
que teu nome honraram,
Foi porque assim
tua vontade o quis.

9. A cada pessoa ele deu um corpo, segundo a sua vontade, fraco ou forte, saudável ou doente. Isto implica que, 10. também outorga diferentes níveis de entendimento, e de conhecimento, cuja diversidade depende de um incontável número de circunstâncias. É difícil dizer qual o alcance que isso pode ter. Por exemplo, quanto às possibilidades de desenvolvimento, as diferenças que existem entre quem nasceu e se criou com uma piedosa família inglesa e alguém nascido e criado entre os bosquímanos são absolutamente surpreendentes. Todavia, podemos estar seguros que as diferenças nunca serão tão grandes para determinar que alguém seja necessariamente bom e o outro mal, ou para forçar alguém à glória eterna e o outro ao fogo eterno. Isto não é possível porque significaria que o caráter de Deus como Criador interferiria com o seu caráter de Soberano, no qual já não age (nem poderia) segundo a sua própria vontade soberana, mas como ele explicitamente nos diz, segundo normas imutáveis de justiça e misericórdia.

Quer possamos explicá-lo, ou não (e não há dúvidas que há inumeráveis casos em que não podemos), devemos manter com toda firmeza que Deus recompensa àqueles que lhe buscam avidamente. Mas não pode recompensar o sol por brilhar porque o sol não é uma criatura livre. Tampouco poderia nos recompensar por deixar que a nossa luz brilhe diante dos homens, se só agíssemos obrigatoriamente como o sol. Toda recompensa, igualmente a todo castigo, pressupõe liberdade de ação. De modo que as criaturas que não têm possibilidade de eleger, tampouco enfrentam a possibilidade de receber recompensa ou castigo.

Portanto, no momento em que Deus age como Soberano, recompensando ou castigando, deixa de agir exclusivamente como Senhor, segundo a sua própria vontade e desejo, para agir como Juiz imparcial, sempre guiado por sua inalterável justiça.

É verdade que, em alguns casos, a sua misericórdia se regozija transbordando sobre a justiça, mas sua severidade nunca ultrapassa a justiça. É possível que Deus recompense além do que seria estritamente justo; mas no castigo, jamais excederá. Podemos admitir que Deus age  como Soberano convencendo algumas almas pecadoras, as fazendo desistir na metade da corrida, graças ao seu poder irresistível. Também parece que ele age com poder irresistível no momento da nossa conversão. Assim mesmo, é possível que muitas vezes durante o curso do nosso batalhar como cristãos, Deus nos toque com o seu poder irresistível, por qual todo crente pode dizer

Em tempo de tribulação,
Tu me socorreste
Quando estava abatido
Me livraste de cair em pecado.

Porém, assim como São Paulo teve a possibilidade de acatar ou de ser rebelde a visão celestial[2], também toda pessoa, depois de Deus ter agido, pode crescer em sua graça ou impedir que ela aja.

Portanto, seja o que for que Deus tenha decidido fazer por sua soberana vontade, como Criador do céu e da terra, e qualquer que seja a sua ação misericordiosa superando e transbordando o exigido pela justiça, a regra geral se mantém tão imóvel como os fundamentos da terra: “O Juiz de toda a terra não fará o que é justo?”[3] Ele julgará o mundo com justiça[4], e a toda pessoa segundo a mais estrita justiça. Ninguém será castigado por fazer o não teria possibilidade de evitar ou por fazer algo que estivesse fora das suas possibilidades. Todo castigo pressupõe que o transgressor teve a possibilidade de evitar cometer a falta pela qual será castigado. De outra maneira castiga-lo seria decididamente injusto e incompatível com a forma de ser do nosso Deus Soberano.

Então, nos asseguramos de sempre diferenciar estas duas visões: Deus como Criador, criador supremo, e Deus como Soberano, o justo Soberano. Devemos ter muito cuidado de diferenciar uma da outra para, poder assim, dar a Deus toda a glória por sua graça soberana, sem questionar a sua justiça incorruptível.



[1] Ef 1.5
[2] At 26.19
[3] Gn 18.25
[4] Sl 98.9


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