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Conversa entre um antinomista e seu amigo

Conversa entre um antinomista e seu amigo

Antinomista – Prazer em lhe saudar meu amigo. Que alegria em vê-lo, mas lamento ter me inteirado de que você mudou de religião.

Amigo – Mudar de Religião! Não sei a que você se refere.

Antinomista – Refiro-me a que você antes acreditava que éramos salvos pela fé.

Amigo – Sim, sem dúvida, e ainda creio.

Antinomista – Acredita, então, que “Jesus na cruz operou a salvação de todos os homens?”[1]

Amigo – Creio que mediante essa entrega ele pagou os pecados de todo o mundo.

Antinomista – Mas você crê que “junto com o sangue de Cristo desapareceram nossos pecados”?

Amigo – Para ser sincero, não estou lhe entendendo.

Antinomista – Não? Não crê que Cristo “na cruz, removeu, apagou e pôs fim a nossos pecados destruindo-os completamente e para sempre”?

Amigo – Certamente ele pagou o preço, e graças a isto todos os que verdadeiramente creem nele recebem a salvação de seus pecados, e se resistirem até o fim, terão salvação eterna. É isto que você quer dizer?

Antinomista – O que quero dizer é que ali ele “sanou, removeu, pôs fim e destruiu por completo todos os nossos pecados”.

Amigo – Você quer dizer que Cristo curou as nossas feridas antes de serem feitas, e que pôs fim a nossos pecados antes de existirem? Isto é tão absurdo, tão obviamente absurdo, que não entendo como pode crer nisso.

Antinomista – Percebi que você iria recorrer a sua “razão carnal”. O que tem a ver fé com razão?

Amigo – Acaso você não lê a Bíblia? Deus não disse aos pecadores “Venham, pois, e vamos discutir?”[2] Também nosso Senhor discutiu com os escribas e fariseus, São Pedro com os judeus (Atos 2.14ss), São Paulo com judeus e gentios. Além disso, boa parte de suas epístolas aos Romanos e aos Gálatas, e a maior parte da carta aos Hebreus, não são outra coisa que uma longa cadeia de raciocínios.

Antinomista – Você pode agir como quiser, mas eu não uso a razão, eu creio.

Amigo – Eu creio, mas também uso a razão, porque não vejo contradição entre as duas; e assim como estaria disposto a perder os meus olhos para salvaguardar minha fé, também estaria disposto a deixar de lado meus raciocínios.

Antinomista – Contudo, não é verdade que os seres humanos costumeiramente abusam da razão? Portanto, é melhor não recorrer a ela.

Amigo – Pois agora você está fazendo exatamente o que acabou de condenar! Está raciocinando contra a razão. Isto não me surpreende, já que sem recorrer à razão é impossível provar ou refutar coisa alguma.

Antinomista – Mas você não pode negar o fato de que as pessoas costumeiramente abusam da razão.

Amigo – Elas a fazem, isto eu não nego. O que realmente nego é a validade da conclusão derivada desse fato. Se fôssemos deixar de lado todas essas coisas que são objeto de abuso por parte dos seres humanos, também deveríamos dispensar a Bíblia, e até mesmo a comida e a bebida.

Antinomista – Bem, então voltamos ao ponto central. Como você crê que chegamos a justificação e a salvação?

Amigo – Só pelos méritos de Cristo, que são meus se eu verdadeiramente crer que ele me amou e se entregou por mim.

AntinomistaSe...! Então para você a salvação é condicional!

Amigo – E para você não é? Pois negá-la significa fazer de Deus um mentiroso, porque ele disse com toda clareza “Aquele que crer será salvo; quem não crer será condenado.” Isto não equivale a dizer que se alguém crer (pois esta é a condição) será salvo?

Antinomista – Eu não gosto da palavra condição.

Amigo – Proponha uma melhor, e a descartaremos.

Antinomista – De todo jeito, insisto que “não há outra coisa além da fé” para se alcançar a justificação e a santificação.

Amigo – O que você quer dizer com não há outra coisa?

Antinomista – Significa que “um só é nosso dever: crer. Nada devemos fazer senão escutar, em silêncio, a voz do Senhor. As portas do céu estão fechadas para os que se esforçam, e abertas para os crentes. Não fazer obras para o céu é tudo o que Deus nos pede.”

Amigo – Você está me dizendo, realmente, que não temos que fazer nada por nossa salvação presente ou futura exceto “crer”?

Antinomista – Certamente é isso que eu disse. “Basta crer com a certeza de que Cristo padeceu a morte por nós, não precisamos de mais nada. Somos justificados mediante a obediência de nossos pensamentos a verdade da graça de Deus em Cristo Jesus. O ser humano não precisa fazer nenhum tipo de obras para ser salvo e justificado. Deus não lhe pede que faça alguma coisa para ser salvo e justificado. A lei lhe impõe fazer obras, mas o evangelho não o obriga a fazer absolutamente nada. Ainda mais, as obras não só são desnecessárias bem como estão proibidas. Deus nos proíbe de trabalharmos para alcançar a justificação. E quando o apóstolo Paulo exorta as pessoas a crer, isto praticamente equivale a pedir-lhes que não façam obras.”

Amigo – Deixemos que Paulo responda por si mesmo. No capítulo vinte e seis de Atos dos Apóstolos há um relato de como Deus o enviou para abrir os olhos dos gentios... para que recebam o perdão dos pecados.[3] Pelo que, explica Paulo, não fui rebelde a visão celestial, mas anunciei... aos gentios que se arrependessem e se convertessem a Deus, fazendo obras dignas de arrependimento.[4] Quero chamar a sua atenção acerca da expressão “não fui rebelde”, ou seja, ele obedeceu a visão celestial ensinado aos gentios antes de serem justificados, antes de terem recebido o perdão dos pecados, que deviam se arrepender e fazer obras dignas de arrependimento. Isto não concorda de modo algum com a afirmação de que lhes “pedia para não fazer obras” enquanto que lhes “exortava a crer.”

Antinomista – Você voltou novamente a sua “razão carnal.”

Amigo – Parece-me que quando já não sabe o que dizer você recorre ao jargão: razão carnal. Contudo, ainda não terminei com o exemplo que estávamos analisando. Você crê que São Paulo pregou àqueles gentios seguindo um mandamento recebido do céu, sim ou não?

Antinomista – Certamente assim o fez. De outro modo teria sido rebelde a visão celestial.

Amigo – Pois então, como você pode afirmar que um ministro de Cristo só pode dizer as pessoas “creiam, creiam”, porque se lhes disse também o que devem fazer está “pregando a lei”? Você não acredita que isto implicaria uma condenação, não só para o grande apóstolo, mas também para Aquele que o enviou e lhe ordenou que pregasse.
 
Antinomista – Seguramente você não vai querer que vivamos debaixo da lei!

Amigo – Temo muito que você desconheça o significado de tal expressão. São Paulo a usa três vezes na Epístola aos Romanos, cinco vezes em Gálatas, e em uma passagem de sua primeira Epístola aos Coríntios onde explica em que sentido ele mesmo estava “debaixo da lei”, e em que sentido não o estava. Ante aos que estão sujeitos a lei (os que também aderiram a dispensação judaica), me tenho feito como sujeito a lei, (tem cumprido com as suas cerimônias) para ganhar os que estão sujeitos a lei; mas ante aos que estão sem lei (os gentios e pagãos), tenho feito como se estivesse sem lei (não estando eu sem a lei de Deus, mas debaixo da lei de Cristo).[5] Fica claro, pois, que o apóstolo estava debaixo da lei de Cristo, embora não estivesse debaixo da lei mosaica.

Antinomista – Mas não diz São Paulo aos crentes em Roma “não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?”[6]

Amigo – Assim é, e isto significa que já não estavam debaixo da dispensação judaica, mas debaixo da graça cristã. Isto também está evidente no versículo seguinte quando ele diz “não vivemos debaixo da lei, mas debaixo da graça.”

Antinomista – Então, ao que se refere quando diz aos gálatas “Antes que chegasse a fé, estávamos sob a custódia da Lei”?[7]

Amigo – Sem dúvida se refere que estávamos debaixo da dispensação judaica antes de crer em Cristo (cf. Gl 3.19). Assim, lemos no capítulo seguinte “Mas quando veio o cumprimento do tempo, Deus enviou a seu Filho, nascido debaixo da Lei”, a dispensação judaica, “para remir aos que estavam debaixo da Lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos”[8] e pudéssemos servir a Deus, sem temor, em justiça e santidade; servi-lo livremente em amor, com espírito semelhante a de uma criança.

Antinomista – Não tente me convencer; sei muito bem do se trata tudo isso. A Lei e as obras (a lei moral, como você gosta de chamá-la) não significa nada para mim. “Pela exigência da lei ninguém está obrigado a dar um só passo, a entregar um só centavo, a comer ou a rejeitar uma única mordida. Por quê? Pois o que precisamente o que Jesus fez foi abolir a lei.”

Amigo – No entanto, uma vez que cremos em Cristo não devemos obedecer aos seus mandamentos?

Antinomista – Obediência! Lei! Obras! Mandamentos! Que espírito tão legalista é o teu! Suponho que “se você não estiver seguro de obedecer todos os mandamentos de Cristo se sentirá desconsolado”. Pelo contrário, “uma pessoa espiritual encontra a graça que justifica na fé, sem necessidade de cumprir com o mandamento de fazer boas obras ou de cumprir com as formalidades do culto”.

Amigo – Mas, como explicar isso a luz de inúmeras passagens da Escritura? Particularmente aquelas palavras de nosso Senhor “Não penseis que vim abolir (ou anular) a Lei; não vim abolir, mas cumprir, porque em verdade lhes digo que antes de passarem o céu e a terra, nem um jota e nem um til passará da Lei. De modo que qualquer um que quebre um destes pequenos mandamentos, pequeno será chamado no reino dos céus”.[9]

Antinomista – Aviso-lhe que não quero mais discutir.

Amigo – Isso é quase como dizer: “não permito que me convençam; prefiro às trevas a luz”.

Antinomista – Não, não é assim; é você que agora está em trevas. Eu estive nelas até algumas semanas atrás, mas agora meus olhos foram abertos; fui escravo durante muito tempo, mas agora reconheço minha liberdade e sou livre.

Amigo – Você se libertou do quê?

Antinomista – Do pecado, do inferno, do diabo e da lei.

Amigo – Você coloca a lei de Deus em boa companhia. Mas, diga-me, como se libertou da lei?

Antinomista – Cristo me libertou.

Amigo – Ah, sim! Da sua própria lei? Peço-lhe que me indique onde posso ler isso.

Antinomista – Aqui em Gálatas 3.13: “Cristo nos redimiu da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós”.

Amigo – Que relação tem isto com o ponto em questão? Aqui diz que Cristo nos redimiu, os crentes, da maldição, ou do castigo justamente merecido por causa das nossas transgressões da lei de Deus no passado. Mas não diz uma só palavra sobre nos redimir da lei, assim como não precisamos ser redimidos do amor ou do céu.

E a quem você se refere quando diz que foi escravo?

Antinomista – Refiro-me a escravidão de estar debaixo da lei.

Amigo – Não há uma só menção sobre isso na Escritura. Se fala da escravidão do temor e da escravidão do pecado, e também da escravidão da lei ritual mosaica; mas de acordo com o sentido que você  dá à palavra, todos os anjos vivem em escravidão no céu.

Antinomista – Bom, eu não sou escravo. O próprio São Paulo disse aos crentes: “Por que vocês se submetem a preceitos?”[10]

Amigo – Isto quer dizer: “Por que sendo cristãos se submetem a preceitos judaicos como os mencionados no versículo seguinte: ‘não toque, não prove, não use’”.

Antinomista – Não, isso não é tudo. O que digo é que “as obras que se veem não servem ao propósito da salvação”. Não há dúvidas a respeito já que “se nem o amor de Deus, nem o amor ao próximo, ou ajudar os pobres, contribuem ou servem ao propósito da justificação ou da salvação, muito menos servem as obras que fazemos para cumprir com os preceitos legais”.

Amigo – Você se refere aos preceitos de Cristo?

Antinomista – Precisamente. “Aqueles que tratam de persuadir aos homens que se não obedecerem às ordenanças do Senhor Jesus, ele nãos os reconhecerá diante do seu pai, promovem o papismo mais perigoso que se possa conceber, e pervertem a pureza do evangelho de Cristo. Eu lhe asseguro que ‘é melhor não cumprir com nenhum mandamento antes que obedecê-los segundo os princípios que atentam contra o evangelho e que são prejudiciais para a alma’”.

Amigo – Em qual passagem da Escritura você fundamenta tal afirmação?

Antinomista – Seria melhor não discutir tanto a partir do texto. Creio que até mesmo a sua ideia de justiça inerente pode ser atribuída a sua forma de estudar os textos.[11]

Amigo – Então você não crê que o crente tenha a justiça inerente?

Antinomista – Exato. Digo que “Deus nos salvará completamente, sem justiça ou santidade alguma de nossa parte”. Buscar a justiça inerente significa ofender o Espírito e pisar no sangue da aliança.[12] Os crentes não têm justiça inerente. Nossa justiça não é outra coisa que o reconhecimento da justiça de Cristo.

Amigo – Eu creio que Cristo mediante o seu Espírito opera justiça em todos aqueles a quem a fé lhes é atribuída como justiça.[13]

Antinomista – “De modo algum, nossa justiça está só em Cristo. É ‘atribuída como’, não é inerente. Somos justos sempre por Cristo, nunca por nós mesmos.”

Amigo – Então, todo o crente é justo ou santo.

Antinomista – Não há dúvida, mas é santo por Cristo, não por si mesmo.

Amigo – Por acaso o crente não vive uma vida santa? Não tem santidade de coração?

Antinomista – Com toda certeza.

Amigo – E a consequência lógica disto não é que o mesmo seja santo?

Antinomista – Não e não. Ele não é santo, só é santo em Cristo. Nem há sombra de santidade nele.

Amigo – Ele não sente amor por Deus e amor por seu próximo? Ele não é imagem de Deus?

Antinomista – Sim, mas não é a santidade do evangelho.

Amigo – Quanta conversa fiada! Você concorda com os meus argumentos e questiona uma palavra! Admite que o crente tem santidade de vida e coração, e que a isso me refiro quando falo de santidade ou justiça inerente.

Antinomista – O que digo é que isto não é santidade evangélica. A santidade do evangelho é a fé.

Amigo – Se você continuar a se fiar nisso, então deve abandonar a discussão; pois seguindo o seu raciocínio, posso argumentar deste modo: A fé é a santidade ou justiça, e todo crente tem fé; portanto, todo crente é santo ou é justo.

Antinomista – Sinto pena de você. Acredite em mim, você se encontra em total escuridão; não sabe nada sobre a verdadeira fé, absolutamente nada.

Amigo – Neste caso, rogo-lhe que me explique.

Antinomista – Farei isso; explicarei tão claro como a luz do sol. Mostrarei a você a essência da doutrina que pessoalmente “recomendo de todo coração, a toda pessoa, como a doutrina mais completa sobre Jesus Cristo.

São muitos os que acreditam conhecê-la, mas na realidade só têm uma ideia muito vaga, pouco desenvolvida do tema. Elas imaginam que nós também nos conformamos com uma fé como a sua, a saber, que Cristo morreu para nos libertar da ira de Deus e adquirir o seu favor e, como consequência disso, podemos chegar a possuir certas qualidades e atitudes que nos tornam aptos para o reino dos céus. Se essa fosse a nossa fé, teríamos que cumprir com o requisito de buscar a dita santificação, e não descansar até tê-la alcançado, ao menos em parte. Pelo contrário, cremos que o sangue derramado na cruz pagou e apagou todos os nossos pecados, trazendo a nossa vida uma justiça eterna. Se acreditarmos nisso, nossos corações e nossa consciência estão limpos como se nunca tivéssemos pecado. Nisto consiste a verdadeira pureza da alma, e não nas virtudes tão bem conhecidas. Aqueles que deste modo foram tornados puros e perfeitos, ficam livres do domínio do pecado. Sem dúvida, também produzem frutos de justiça, mas não para se tornarem mais santos, pois já são perfeitamente santos mediante a fé. É verdade que ainda temos um corpo pecador, que permanece na maldade e que continuamente nos incita ao mal, mas o sangue de Jesus Cristo nos livra do pecado e destrói esta conexão”.

Amigo – De todos os argumentos que tenho escutado até agora, este é o mais “vago e menos desenvolvido”. Vamos revisá-lo ponto por ponto. Em primeiro lugar você descreveu o que considera uma fé falsa: “que Cristo morreu para nos libertar (ou apaziguar) da ira de Deus e para adquirir o seu favor (por exemplo, para mim que sou um pecador perdido) e, como consequência disso (do favor de Deus adquirido com o sangue de Cristo), obter” para mim “certas qualidades e atitudes que me tornam apto para o reino dos céus”. Pois bem, como você prova que esta fé é falsa?

Antinomista – Muito fácil; é falsa porque os seres humanos “se veem obrigados a mantê-la com o seu modo de pensar, seus sentimentos e suas obras”.

Amigo – Mas você não acabou de admitir que qualquer pessoa que tenha a verdadeira fé “tem santidade de vida e de coração”, e que “essa pessoa criada à imagem de Deus sente amor por Deus e ao seu próximo”?

Antinomista – Sim, admiti. O que há com isso?

Amigo – Pois você se contradisse abertamente. Você admite que a verdadeira fé não só não pode se manter, mas que também não pode existir nem por um momento sem “certas qualidade e atitudes”, o amor a Deus e a toda a humanidade, “que nos torna aptos para o reino dos céus”. Você tem admitido que a verdadeira fé não pode subsistir sem um coração disposto à santidade, um permanecer nas boas obras e a percepção de que Deus me ama mesmo sendo um pecador.

Antinomista – Prossiga. Estou lhe escutando.

Amigo – Depois você disse: “Se esta fosse a nossa fé, teríamos que cumprir com o requisito de buscar a dita santificação”. Conclui-se a partir das suas próprias palavras que esta é a sua fé, se talvez a tiver. Logo, vemos que você “busca esta santificação”, isto é, o amor a Deus e ao próximo, já que se você não tiver estes sentimentos, fica claro que o seu coração não está limpo, mas endurecido.

Antinomista – Você pode dizer o que quiser. Isso é tudo o que sabe.

Amigo – Você continua dizendo: “Pelo contrário, cremos que o sangue derramado na cruz pagou e apagou todos os nossos pecados”. Pois bem, quem poderia crer o contrário? Se isto significa que Cristo livrou a todos os que creem nele da punição por todos os pecados, veja quão grande descoberta! Diga-me, por favor, a quem pretende responder com este argumento?

Antinomista – A você, que nega que “mediante o seu sacrifício, Cristo trouxe justiça eterna a nossa vida”.

Amigo – Eu não o nego, não mais do que você o entende. A minha pergunta é em que sentido você diz que Cristo “trouxe justiça”. Onde a trouxe? Talvez a trouxe primeiro ao mundo? Não é possível afirmar isso sem dizer que todos os que já haviam partido deste mundo se perderam? Ou talvez a tenha colocado na alma dos crentes? Pois, então, os crentes possuem justiça inerente ou interior. Seria melhor que deixasse este texto de lado. Não lhe serviria aos propósitos do seu argumento.

Antinomista – Vejo com toda clareza que você continua tão cego como antes. Creio que a sua capacidade intelectual será a sua ruína. Não lhe disse que “se acreditarmos, nossos corações e nossa consciência estão limpos e que nisso consiste a verdadeira pureza da alma, e não nas virtudes tão bem conhecidas”? Assim, somos tornados perfeitamente santos. E apesar de que “o corpo pecador, que permanece na maldade e que continuamente nos incita ao mal, o sangue de Jesus Cristo nos livra do pecado e destrói esta conexão”.

Amigo – Que conexão? Temo que você tenha tropeçado com outra palavra cujo significado não compreenda. E mesmo que entenda, o certo é que eu não entendo você. Como é possível que minha mente “me incite continuamente ao mal” e ao mesmo tempo “esteja livre do pecado e seja perfeitamente limpa e perfeitamente santa”?

Antinomista – Ó, a tolice de algumas pessoas! Não quis dizer verdadeiramente santo, mas contado como santo. Eu lhe disse claramente que a santidade da qual falamos não está em nós, mas em Cristo. Os frutos do Espírito (que comumente chamamos de santificação) amor, benignidade, paciência, bondade, mansidão, temperança,[14] não nos fazem santos perante Deus nem perante a nossa própria consciência.

Amigo – Eu sei muito bem que nenhum deles pode expiar um só pecado. Isto só o sangue de Cristo pode fazer, em virtude do qual Deus nos perdoa e opera estes frutos em nós mediante a fé. Agora eu entendi bem o que você queria dizer?

Antinomista – Não, não; a sua ignorância é surpreendente. Refiro-me a que “nós não nos tornamos bons ou santos por nossas qualidades ou inclinações interiores, mas que, purificada e santificada a nossa consciência mediante a nossa fé em Cristo, produzimos, interior e exteriormente, frutos de santidade”. Espero que agora você me entenda.

Amigo – E eu espero ter entendido mal, porque se entendi bem, você está dizendo coisas sem sentido e tem caído na maior contradição que pessoa alguma já tenha expressado.

Antinomista – Em que sentido?

Amigo – Você disse que “não nos tornamos bons ou santos por nossas qualidades ou inclinações interiores”. Não? De modo que a bondade interior não nos torna bons? Lembre-se que não estamos falando de justificação, mas de santificação. Não nos torna santos a santidade interior, e mansos a mansidão interior, e amáveis a amabilidade interior? Acaso não são todas elas qualidades e inclinações interiores? E que outra coisa poderiam ser?

E então, um instante depois de você ter negado que tivéssemos santidade interior, afirma que “nossa consciência é santificada e podemos produzir frutos de santidade em nossa vida interior e exterior”. Isto é um cúmulo de contradições!

Antinomista – Você interpreta mal as minhas palavras. Eu me refiro a que estas inclinações interiores “não produzem uma santidade nossa. Não somos mais santos se amarmos mais a Deus e as demais pessoas, nem somos menos santos se amarmos menos”.

Amigo – Ah, não! De modo que um crente não cresce em santidade do mesmo modo que cresce em amor a Deus e ao próximo?

Antinomista – A minha resposta é não. “No preciso instante em que o crente é justificado, ele é plenamente santificado. E a partir desse momento até o dia da sua morte, não ganha e nem perde santidade. A total justificação e a total santificação se dão de maneira simultânea. E, a partir de então, nenhuma delas pode crescer ou diminuir”.

Amigo – Mas eu creio que deveríamos crescer na graça!

Antinomista – “Crescer na graça, mas não na santidade. No instante em que somos justificados, alcançamos tal pureza de coração como jamais teríamos outra. Em Cristo, um bebê recém-nascido é tão puro de coração como um pai. Não existe diferença”.

Amigo – Você faz bem em se opor ao estudo das Escrituras e o uso da razão, visto que enquanto não a colocarmos de lado, é impossível aceitar tudo isso. Agora entendo a sua doutrina. Eu a entendo, mas ela não me agrada. Em suma, você fala muito, porém não diz nada. Você se esforça para tentar mostrar que tem encontrado as verdades mais transcendentes jamais conhecidas por pessoa alguma. E a que se reduz tudo isso? Não é mais que um amontoado de palavras sem sentido. A única coisa verdadeiramente original em sua doutrina é a acumulação de argumentos absurdos, os quais se contradizem a si mesmos, assim como a Escritura e o senso comum. Entretanto, se orgulham e se vangloriam crendo que vocês são o povo e que a sabedoria morrerá com vocês.[15] Rogo a Deus para que lhes torne humildes, e lhes prove, e mostre o que há em seus corações.



[1] As citações entre aspas correspondem a autores já ausentes e eu decidi não dar os seus nomes. [Nota original de Wesley]
[2] Is 1.18
[3] At 26.17-18
[4] ss. 19-20
[5] 1Co 9.20-21
[6] Rm 6.14-15
[7] Gl 3.23
[8] Gl 4.4-5
[9] Mt 5.17-19
[10] Cl 2.20
[11] Veja neste mesmo volume das Obras de Wesley, o tratado Reflexões Sobre a Justiça Imputada de Cristo. N. do E.
[12] Hb 10.29
[13] Rm 4.5
[14] Gl 5.22
[15] Jó 12.2

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